quinta-feira, 30 de abril de 2009


Bar do Buraco, point cobiçado pela moçada nos anos 90. Numa noite meio chuvosa, fomos eu e Tetê ouvir Nei Lisboa por lá. Pegamos um táxi, no conjunto, depois de algumas geladas e tomamos o rumo da Vila. No caminho, demos carona a Toninho, que caminhava na mesma direção. Show massa. Umas três mesas apenas. Nós sentados de frente pro cara, tocando pra gente, e a gente pedia. Conversava. Rolou aquele repertório lindo que é nossa cara e nossa trilha. Telhados de Paris, etc. Inesquecível.

Última canção





Como esquecer a noite crivada de estrelas, cravada fundo no destempero? Se o céu se abria adiante, abrigando o alcance do olhar, todas as penhas e o cenário de adornos.
Por uma mínima trilha de Minas, entre capins e capelas, era possível erguer não a voz, não o tronco, mas a espera. Que avançava, alerta, pelas curvas de cada pausa. Que sabia, pelas margens, aonde ainda não se chegava. Embora o hálito de músculos tesos, embora o tato sem controle, embora súbito vagas de dissolução.
(Alguns ruídos de insetos, carrapichos na barra da calça, latidos ao longe.) Vertigem de fumos no ar enregelado ou tentativas de ardor desfeitas por uma lógica em precipício não desvendarão, seque sujarão, as miúdas cifras interpostas entre o quase entrelaçamento.
Aqui mais vasto podia ser o pasmo, mais vasto podia ser o avesso. Sem cismas, assim como sem resignações. Rente ao chão, sentindo no corpo a terra úmida de sereno.

Júlio Castañon Guimarães

quarta-feira, 29 de abril de 2009


PEDIDO

Houvesse Deus e os deuses
a fim de que lhes pedisse:

o coração em que penso, por
mais frases e bocas que beije,

todas ache feias e frias, e que,
amanhã, ao despertar, ou à saída

da boate, pense em mim quando
a luz do dia sobre ele se desate.

Eucanaã Ferraz

A RIMBAUD, O AMÁLGAMA

Houve morte de onde nasci
houve pranto onde estive incomunicável
houve silêncio onde estive impassível
e houve além Rimbaud. Ele é
e é a matéria e uma certa mulher
um certo bêbado e um certo metafísico
um certo santo e um certo dionísiaco.
Rimbaud, o teu limite de imagem
é a circunstância de te deparares
com o tempo vazio no retrato de Charleville.
Rimbaudiei-te, sonhos de remanso e sordidez,
e me permaneci populoso na poesia.

Sanderson Negreiros

Cesário Verde


MANIAS

O mundo é velha cena ensangüentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz - hoje uma ossada -
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!

segunda-feira, 27 de abril de 2009


AVE DE ARRIBAÇÃO

Agosto. O claro mês dos meus anos. Que anseio
De ser asa emigrante e rugir pelos ares,
Pelos longes do céu, através desses mares,
Em busca do calor do sol de um clima alheio!

Que saudade sem fim de outras terras me veio!
Que ânsia de me aquecer por estranhos lugares!
Pois se não tenho aqui lenitivo aos pesares,
Quanto mais quem aqueça ao regaço de um seio!

Minha mãe? Minha irmã? Duas mulheres santas,
Mas inda falta alguém neste longo caminho
Que tem na mocidade o perfume das plantas...

E como não posso ir, e como vais e eu fico,
À noiva que me espera à beira de algum ninho,
Ave de arribação, leva esta flor no bico!

Ferreira Itajubá

ANCHIETA FERNANDES


domingo, 26 de abril de 2009


ORIKI DE OXUM

Oxum, mãe da beleza
Graça clara
Mãe da clareza

Enfeita filho com bronze
Fabrica fortuna na água
Cria crianças no rio

Brinca com seus braceletes
Colhe e acolhe segredos
Cava e encova cobres na areia

Fêmea força que não se afronta
Fêmea de quem macho foge
Na água funda se assenta profunda
Na fundura da água que corre

Oxum do seio cheio
Ora Ieiê, me proteja
És o que tenho -
Me receba.

(Transcriação de Antônio Risério)

ezra pound.


SAUDAÇÃO

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol.
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nada no lago
e não possuem nem o que vestir.

(Tradução de Mário Faustino)

O Sucesso é mais doce
A quem nunca sucede.
A compreensão do néctar
Requer severa sede.

Ninguém da Hoste ignara
Que hoje desfila em Glória
Pode entender a clara
Derrota da Vitória

Como esse - moribundo -
Em cujo ouvido o escasso
Eco oco do triunfo
Passa como um fracasso!

Emily Dickinson

Tradução de Augusto de Campos

sexta-feira, 24 de abril de 2009


O QUARTO EM DESORDEM

Na curva perigosa dos cinqüenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não se sabe como é feita: amor,
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,

verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.

Carlos Drummond de Andrade

INTERTEXTOS

Un cronopio maúlla en la calle Boedo.
La Maga traduce al lunfardo
Las aventuras de Arthur Gordom Pym.
Un boxeador juega a la rayuela
en un café del bulevar Saint-Michel.
Morelli conduce una camioneta
por la autopista Paris-Marseille.
La clocharde cruza el abismo sobre un estrecho
tablón.
Lucas toca una pieza de jazz
en un bar de la Habana.
Berthe Trépat desaparece en Buenos Aires.
Un gato llamado Lezama arrastra las erres.
Julio es finalmente regalado al cumpleaños de su
reloj.

Mirta Yáñez, poeta cubana contemporânea

quinta-feira, 23 de abril de 2009


DO SÍTIO VASSOURINHA
AVISTA-SE A CIDADE

A fazenda relembra antigos laço:
festas, passeios, açudes, banhos.

Ajunta-se água em barreiros, lajedos:
os corpos eram deuses em banho grego.

A porteira, os pés de algaroba,
os bois puxando arado, carroca,

a balança, a forrageira, os tachos,
cerca de facheiros no ocaso: fachos.

Meus olhos se debruçam nas casas
que dormem à sombra da Serra Aguda.

Francisnaldo Borges

MORTE POR ÁGUA

Flebas, o Fenício, morto há quinze dias,
Esqueceu o grito das gaivotas e o marulho das vagas
E os lucros e os prejuízos.
Uma corrente submarina
Roeu-lhe os ossos em surdina. Enquanto subia e descia
Ele evocava as cenas de sua maturidade e juventude
Até que ao torvelinho sucumbiu.
Gentio ou judeu
Ó tu que o leme giras e avistas onde o vento se origina,
Considera a Flebas, que foi um dia alto e belo como tu.

T.S.Eliot

(Tradução: Ivan Junqueira)

terça-feira, 21 de abril de 2009

dois poemas de konstantinos kaváfis


O VELHO

No meio do café ruidoso, sem ninguém,
por companhia, está sentado um velho. Tem
à frente um jornal e se inclina sobre a mesa.

Imerso na velhice aviltada e sombria,
pensa quão pouco desfrutou as alegrias
dos anos em vigor, eloqüência, beleza.

Sabe que envelheceu bastante. Vê, conhece.
No entanto, o seu tempo de moço lhe parece
ser ainda ontem: faz tão pouco, faz tão pouco...

Medita no quanto a Prudência dele rira;
em como acreditara sempre na mentira
do "Deixa para amanhã. Há tempo." Que louco!

Pensa nos ímpetos que teve de conter,
nas alegrias frustras por seu tolo saber,
que cada ocasião perdida agora escarnece.

Porém, tanto pensar, tanta recordação,
põem o velho confuso, e sobre a mesa, então,
daquele café, debruçado, ele adormece.


JURA

A cada pouco jura começa vida nova.
Mas quando a noite vem com seus conselhos,
seus compromissos, com suas promessas;
mas quando a noite vem com sua força
(o corpo quer e pede), ele de novo sai,
perdido, atrás da mesma alegria fatal.

(Tradução do grego: José Paulo Paes)

De À espera dos bárbaros


Diz o narrador do romance de Coetzee: "Outras vezes, porém, particularmente, no ano passado, com a jovem cujo apelido na pensão é Estrela, mas que sempre imagino como um passarinho, senti de novo o poder do antigo feitiço sensual, mergulhei em seu corpo e me deixei transportar para os remotos limites do prazer. E assim eu pensei: 'É apenas uma questão de época, de ciclos de desejo e apatia num corpo que, lentamente, começa a esfriar e morrer. Quando jovem, o simples cheiro de mulher era capaz de me sacudir; agora, evidentemente, só o mais doce, o mais jovem, o mais novo deles tem esse poder. Qualquer dia, hão de ser os meninos'. Com certo fastio, antevejo meus últimos anos neste óasis generoso."

segunda-feira, 20 de abril de 2009

MAL SECRETO
(Waly Salomão/Jards Macalé)


Não choro
meu segredo é que sou rapaz esforçado
fico parado calado quieto
não corro não choro não converso
massacro meu medo
mascaro minha dor
já sei sofrer
não preciso de gente que me oriente

Se você me pergunta
como vai
respondo sempre iguall
tudo legal

Mas quando você vai embora
movo meu rosto do espelho
minha alma chora
vejo o Rio de Janeiro
vejo o Rio de Janeiro
Comovo não salvo não mudo
meu sujo olho vermelho
não fico parado
não fico calado
não fico quieto
corro choro converso
e tudo o mais jogo num verso
intitulado mal secreto
e tudo o mais jogo num verso
intitulado mal secreto

domingo, 19 de abril de 2009


JACK KEROUAC
(Alice Pink Pank e Julio Barroso)

Uma noite eu sonhei que era Jack Kerouac
mandando brasa nas estradas do mundo subi
no terraço: Rua Houston e vi as torres gêmeas
brilhando o pelo louro da menina as tranças
negras do crioulo sua guitarra sua angústia
calma peguei a lata de spray desci pra rua
e pintei dois olhos verdes nas paredes ontem
à noite eu sonhei que conversava com Jack
Kerouac ele me disse que renascia negro
tocador de piston e seu sopro som era tão alto
que despertava todo mundo eu acordei mandando
brasa nas estradas do mundo